Por: Geremias do Couto
Como se não bastasse a tentativa de usar os princípios do arminianismo como cortina de fumaça para dar ares de legitimidade às teses do Teísmo Aberto, procurando até ensejar um conflito entre os adeptos daquela corrente e os calvinistas, os defensores do TI trazem agora para a cena do debate a tese da kenosis para com ela defender a idéia de que as intervenções de Deus na história se dão mediante o próprio esvaziamento.
O artifício segue a mesma linha de tentar colocar uma corrente contra a outra, já que em relação à kenosis, no meio evangélico, ocorre a mesma dicotomia que põe arminianistas e calvinistas em lados diferentes quanto à “mecânica” da salvação. Há também, no caso da kenosis, duas correntes distintas que se respeitam e em nada degradam as chamadas doutrinas cardeais da Bíblia Sagrada.
Essas correntes não diminuem a pessoa de Deus e tratam o Cristo humanizado sob duas perspectivas que não lhe subtraem a divindade e ambas convergem num ponto: o Senhor ressurreto e ascendido aos céus possui em si mesmo todos os atributos exclusivos de Deus, quais sejam: onipotência, onipresença, onisciência, transcendentalidade, eternidade, imutabilidade e perfeição. A divergência aparece quando se discute a sua humanidade.
Uma corrente afirma que a kenosis, ou seja, o esvaziamento de Cristo como descrito em Filipenses 2.5-11, implica afirmar que o Senhor, enquanto homem, embora tenha mantido a natureza divina, esvaziou-se de todos os seus atributos. Ele os teria posto de lado para viver nos estritos limites de sua humanidade apenas sob o poder do Espírito Santo. Assim, enquanto esteve na terra, não os teria usado em nenhuma circunstância, embora os tivesse sempre à mão.
A outra corrente, como bem defendeu Silas Daniel em seu blog, pressupõe que “Filipenses 2.7 não está dizendo que Jesus esvaziou-se de seus poderes divinos (ou em relação a eles), mas sim da sua glória, isto é, da sua ‘dignidade divina’; nesse sentido, Jesus ‘tornou-se a si mesmo insignificante’(aqui estou usando duas expressões emprestadas dos teólogos James Packer e Bruce Milne). Jesus se esvaziou de sua glória celeste, não de seus atributos. Os atributos de Jesus continuavam com Ele e em plena atividade. Há muitas passagens nos Evangelhos que provam que seus atributos estavam em plena atividade”.
O que fizeram então os que se alinham ao Teísmo Aberto? Como é constrangedora a pressuposição de que Deus não conhece o futuro e depende da autonomia do homem para construí-lo, negando-lhe com essa afirmação o atributo exclusivo da onisciência, lançaram mão da primeira interpretação da kenosis para afirmar que as intervenções de Deus no Antigo Testamento seguiram os mesmos critérios do esvaziamento de Cristo em sua humanização. Deus “esvaziou-se” de seus atributos, isto é, colocou-os de lado, sem fazer uso deles, em todos os seus atos históricos, nos quais sempre agiu em cooperação com o homem. Assim se explicam as chamadas teofanias no Antigo Testamento. Mas os defensores do TI foram além: ainda hoje Deus age da mesma forma através de Jesus. Veja o que diz Ed René Kivitz em seu blog:
“Creio que Deus conduz a história independentemente de sua kenosis, mas entra na história sempre esvaziado, através de Jesus. Apenas para diferenciar os critérios de relacionamento de Deus com sua criação e suas criaturas, falemos de Deus exaltado (sem kenosis) e do Deus esvaziado, em Jesus (com kenosis). Deus conduz a história desde seu alto e sublime trono, Deus exaltado, mas participa da história em Jesus, o Deus esvaziado. Estes são os sentidos das teofanias: a presença de Deus, em Jesus, no Velho Testamento, antes da encarnação”.¹ Confuso, não? É um Deus ora exaltado, ora esvaziado, que vive numa zona cinzenta, onde parece não saber bem o que quer. Ed René Kivitz conclui então o seu pensamento:
“Quanto tempo será necessário para que os cristãos assumam que o Deus exaltado continua a agir na história como Deus esvaziado? Este é o tempo da afirmação da terceira kenosis: o esvaziamento de Deus para habitar sua igreja”.². Como se vê, inventaram uma primeira kenosis, o Deus esvaziado do Antigo Testamento, e também uma terceira: o Deus esvaziado da presente era do Reino, limitado em sua ação e sempre dependente do homem para construir o futuro.
No entanto, ainda que pudesse ser considerada válida a corrente que defende a kenosis como a descrição de Cristo, enquanto homem, esvaziado de seus atributos, seria ela uma premissa legítima para fundamentar o argumento em defesa da tese do esvaziamento de Deus? Daria ela respaldo a afirmação de que Deus em suas intervenções históricas teria posto de lado os seus atributos, tanto no Antigo Testamento quanto na presente era?
Aos fatos:
1. Quando Cristo se encontrava na cruz, às portas da morte, e exclamou: “Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?” (Mateus 27.46), a quem se dirigia: ao Deus exaltado ou ao Deus esvaziado? Se ele se referisse à última hipótese, não faria sentido tal exclamação!
2. Quando o Senhor, após a ressurreição, declarou aos discípulos: “É-me dado todo o poder no céu e na terra” (Mateus 28.18), que “todo poder” era esse? Pertencia ao Deus exaltado ou ao Deus esvaziado? Se estivesse se reportando ao último, seria uma declaração ambígua e sem sentido. Afinal, receber “todo o poder” de outrem – o próprio Deus – significa que este não está “esvaziado” e implica ser investido de todos os atributos próprios do poder concedente.
3. Quando a própria passagem de Filipenses 2.7-11 diz que Deus exaltou a Jesus soberanamente, e lhe deu um nome sobre todos os nomes, que Deus era esse: o Deus exaltado ou o Deus esvaziado? Se fosse o Deus esvaziado, que poder teria ele de exaltar outra pessoa de maneira soberana? Tal afirmação soaria ridícula!
4. Ainda sobre a passagem de Filipenses 2.7-11, se Deus exaltou a Jesus soberanamente, estaria ele agora, no trono de sua glória, exaltado ou esvaziado? Se estiver esvaziado, a declaração apostólica de Paulo é então uma farsa e cabe concordar com os teístas abertos, quando afirmam que os autores bíblicos se contradizem. No entanto, essa passagem é coerente com toda a Bíblia que afirma a soberania de Deus e a exaltação de Cristo.
5. Quando o apóstolo João vê o grande trono branco (Apocalipse 20.11), e o Senhor soberano assentado sobre ele, ao final da história, portanto num tempo ainda futuro, trata-se do Deus exaltado ou do Deus esvaziado? Se fosse esse o caso, que autoridade teria ele de julgar os vivos e os mortos de todas as eras? É óbvio que o apóstolo referia-se ao Deus Onipotente, como cantado no “Aleluia de Haendel”, que tem em suas mãos o domínio da história e que, soberanamente, em tempos imemoriais (Apocalipse 13.11), decidiu enviar Jesus ao mundo para prover a redenção dos nossos pecados.
Poderia usar, aqui, outras passagens bíblicas para desconstruir essa falácia, mas essas por enquanto bastam. O fato é que, mesmo considerando válida a primeira interpretação da kenosis, do esvaziamento de Cristo, ela é, ainda assim, uma premissa falsa para fundamentar a tese do esvaziamento de Deus em suas intervenções históricas.
E quando a premissa é falsa, o que se constrói sobre ela também é falso.
¹ www.outraespiritualidade.blogspot.com/2007/06/kenosis.html